A polêmica discussão sobre a distinção da escala de DSR para mulheres

Há muitas décadas, a escala do descanso semanal remunerado (DSR) das mulheres é debatida no meio jurídico. No presente artigo, procuramos refletir sobre o porquê desse debate se mostrar ainda tão atual e importante.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), desde a sua redação original aprovada pelo Decreto-Lei 5.452 em 1º de maio de 1943, traz um capítulo dedicado exclusivamente à proteção do trabalho da mulher (Capítulo III). Nesse capítulo, o art. 386 prevê que “havendo trabalho aos domingos, será organizada uma escala de revezamento quinzenal, que favoreça o repouso dominical”. Estabeleceu-se, então, a regra de que o DSR das mulheres deve coincidir com o domingo ao menos uma vez a cada quinze dias.

Para os homens, sempre se aplicou a regra geral de concessão do DSR preferencialmente aos domingos (art. 67 da CLT c/c Lei 605/49) e, em se tratando de escalas de revezamento ou folga, garantindo-se a coincidência do descanso com o domingo a cada sete semanas de trabalho, conforme Portaria MTPS 417/1966 (atualmente revogada).

Especificamente para o setor do comércio, a Lei 10.101 de 19 de dezembro de 2000 estabeleceu que o DSR deveria coincidir com o domingo pelo menos uma vez a cada quatro semanas, periodicidade que foi posteriormente reduzida para três semanas pela Lei 11.603/2007, sem previsão expressa de distinção de gênero.

A primeira pergunta que surge nesse contexto é: qual a razão para tal distinção? Por que o DSR da mulher precisaria recair no domingo a cada duas semanas, quando o homem poderia trabalhar até seis domingos consecutivos (ou dois, no setor do comércio), folgando em outros dias da semana?

A resposta para essa pergunta é de cunho histórico-social. Num primeiro momento, a distinção se mostra como um benefício para as trabalhadoras mulheres, um direito orgulhosamente conquistado pelo gênero, uma condição mais favorável que a dos homens, justificada pelas diferenças naturalmente existentes entre os dois gêneros.

Àquela época, a sociedade se organizava e funcionava de modo a crer que as mulheres precisavam estar em casa aos domingos com mais frequência que os homens, não por motivos biológicos, mas por afazeres e responsabilidades relacionadas ao lar, à família e até mesmo à Igreja. Afinal, se por um lado é razoável defender que o corpo humano (independentemente do gênero) precise de ao menos um dia de descanso por semana, por outro lado seria difícil sustentar que a exigência de que tal descanso ocorra necessariamente aos domingos tenha alguma origem em fatores biológicos ou em preocupações relacionadas a saúde e segurança.

Inegável que, durante décadas, essa diferenciação tenha sido importante e até determinante para o ingresso da mulher no mercado de trabalho, já que muitas se viam impedidas de exercer alguma atividade remunerada, considerando a impossibilidade de se conciliar o emprego com as atividades domésticas. Felizmente, apesar de ainda haver muito espaço para progresso em termos de igualdade de gênero, esse cenário foi bastante modificado ao longo das últimas décadas. Atualmente, a mulher ocupa relevante posição no mercado de trabalho e inclusive em posições de liderança, como indica o Women in the Workplace 2023, relatório anualmente divulgado pela McKinsey.

Questiona-se, então, completados 80 anos de vigência da CLT: ainda faz sentido manter a diferenciação da escala do DSR para homens e mulheres? Frente à realidade atual da sociedade, quão efetiva se mostra essa previsão como forma de proteção ao trabalho da mulher? Em que medida tal distinção poderia prejudicar as mulheres ao invés de beneficiá-las, incentivando empresas a privilegiar a contratação de homens (ainda que não deliberadamente) e perpetuando o estereótipo de que a mulher é a principal cuidadora do lar, da família e dos filhos?

Definitivamente, a recuperação física e mental da mulher independe do dia em que o descanso é usufruído. Em muitas hipóteses, a mulher poderia preferir repousar em outros dias da semana, qualquer que fosse a razão. Imagine-se, por exemplo, mães que gostariam de ter a folga durante a semana para levar ou buscar seus filhos na escola ou em qualquer outra atividade. Imagine-se, ainda, no setor do comércio, bares e restaurantes, empregadas que prefiram trabalhar aos domingos por se tratar de um dia de maior movimento e com potencial de auferir comissões ou gorjetas mais vantajosas.

O que dizer das mulheres que atualmente optam por não constituir família e não ter filhos, e que não enxergam qualquer vantagem em permanecerem em casa aos domingos? Isso sem falar nas atividades em que a presença de cargos gerenciais aos domingos é obrigatória (farmácias, por exemplo), o que naturalmente dificulta a contratação ou promoção de mulheres para esses cargos, já que a lei proíbe mulheres de trabalharem dois domingos consecutivos.

Assim, por qualquer perspectiva que se analise essa questão, não nos parece que o convívio familiar aos domingos seja mais importante para a mulher do que para o homem, especialmente quando o ativismo pela igualdade de gênero preza justamente pela justa distribuição das obrigações familiares e domésticas. Importante lembrar que impedir a mulher de exercer atividade remunerada aos domingos pode significar impor a ela a obrigação de trabalhar de forma não remunerada em atividades do lar.

Este artigo não tem o objetivo de responder a todas essas perguntas, mas de estimular tais reflexões, que extrapolam o campo teórico sociológico e invadem o campo das disputas judiciais, como se viu recentemente em acirrado julgamento ocorrido no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em novembro de 2023, foi publicado acórdão proferido pela 1ª Turma do STF no julgamento do RE 1.403.904/SC, acerca da periodicidade da coincidência do DSR com os domingos, para empregadas mulheres no setor do comércio. O processo é público e pode ser consultado através do site do STF.

A discussão envolve o aparente conflito entre o art. 386 da CLT (norma geral de proteção ao trabalho da mulher) e o art. 6º, parágrafo único, da Lei 10.101/2000 (aplicável especificamente ao setor do comércio). Segundo o art. 386 da CLT, o DSR da mulher deve recair no domingo a cada duas semanas; já a Lei 10.101/2000 prevê uma periodicidade de três semanas para tal coincidência.

A disputa judicial tem origem em ação coletiva ajuizada pelo Sindicato dos Empregados do Comércio de São José (SC) contra as Lojas Riachuelo S.A., buscando a condenação da empresa varejista no pagamento em dobro das horas trabalhadas pelas mulheres no segundo domingo consecutivo, com base no art. 386 da CLT. Em defesa, a Riachuelo alega que a norma aplicável aos seus empregados e empregadas é a Lei 10.101/2000, em razão da especificidade do setor do comércio.

A ação foi julgada improcedente em 1ª instância, com resultado mantido no TRT da 12ª Região. A 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), com relatoria do ministro Maurício Godinho Delgado, referendou o entendimento regional, no sentido de que a Lei 10.101/2000 prevalece sobre o art. 386 da CLT por se tratar de legislação mais específica, superveniente e sem distinção de gênero. O acórdão também aborda que a proteção do trabalho da mulher (art. 7º, XX, Constituição) deve ser aplicada de modo a não prejudicar a inclusão e permanência da mulher no mercado de trabalho, sugerindo que a aplicação do art. 386 da CLT poderia desfavorecer a contratação de mulheres no setor do comércio.

O resultado mudou quando a SDI do TST, órgão responsável pela uniformização de jurisprudência, acolheu recurso interposto pelo sindicato, para decidir que o DSR das empregadas da Riachuelo deve coincidir com o domingo uma vez a cada duas semanas. Segundo acórdão da SDI, o art. 386 da CLT prevalece sobre a Lei 10.101/2000 por ser mais específico em relação ao destinatário da norma. A decisão também aborda que a proteção do art. 386 da CLT endereçaria uma necessidade social, familiar e biológica inerente à realidade das mulheres.

Os autos foram remetidos ao STF para julgamento de recurso extraordinário interposto pela Riachuelo (RE 1.403.904/SC) e o processo contou com a participação do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), entidade sem fins lucrativos voltada à defesa dos interesses da atividade econômica do ramo varejista, na condição de amicus curiae.

Em decisão monocrática proferida em outubro de 2022, a ministra Cármen Lúcia negou provimento ao recurso extraordinário da Riachuelo (RE 1.403.904/SC), sob o entendimento de que a escala diferenciada prevista no art. 386 da CLT é norma protetiva dos direitos fundamentais sociais das mulheres, devendo ser observada também no setor do comércio. No entender da ministra, a decisão estaria em linha com a jurisprudência firmada pelo STF no julgamento do RE 658.312, com repercussão geral (Tema 528), no qual se reconheceu que o princípio da igualdade não é absoluto, sendo legítimo e constitucional o tratamento diferenciado entre homens e mulheres quando se trata da proteção do trabalho da mulher.

Importante frisar que o Tema 528 da repercussão geral do STF diz respeito especificamente ao antigo art. 384 da CLT, já revogado pela Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), que previa, para as mulheres, um intervalo de 15 minutos entre o término da jornada regular e o início das horas extras. Ocorre que a discussão em torno do art. 384 da CLT difere, em inúmeros aspectos, da discussão acerca do art. 386. No primeiro caso, se discutia a supressão de um direito (o intervalo de 15 minutos), quando no segundo caso se discute apenas o deslocamento do DSR para outro dia da semana, sem supressão de qualquer direito.

Em sessão de julgamento da 1ª Turma do STF, o ministro Alexandre de Moraes acompanhou o entendimento da ministra Cármen Lúcia. Por outro lado, os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux divergiram, para dar provimento ao recurso da Riachuelo, opinando pela prevalência do parágrafo único do art. 6º da Lei 10.101/2000 sobre o art. 386 da CLT. O último ministro a votar seria o ministro Dias Toffoli. No entanto, em razão de sua transferência para a 2ª Turma, sua vaga foi preenchida pelo ministro Cristiano Zanin, que votou pelo desprovimento do recurso, acompanhando o voto da ministra Cármen Lúcia.

Numa votação acirrada de três votos contra dois, venceu o entendimento de que o art. 386 da CLT prevalece sobre o parágrafo único do art. 6º da Lei 10.101/2000. O acórdão, com a compilação dos votos dos cinco ministros, foi publicado em 29 de novembro de 2023. 

A decisão da 1ª Turma do STF no RE 1.403.904/SC não encerra a discussão sobre o tema, pois não se trata de processo com repercussão geral ou efeito vinculante. É possível, portanto, que continuem havendo decisões divergentes proferidas em instâncias inferiores, podendo o próprio STF voltar a enfrentar esse tema futuramente.

Fonte: Marília Veiga Ravazzi – Portal Jota