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Quais são as problemáticas do afastamento da gestante durante a pandemia?

Pergunta ► Quais são as problemáticas do afastamento da empregada gestante do trabalho presencial durante a pandemia da Covid-19?

Resposta ► Com a palavra, a Professora Sandra Helena Favaretto[1].

Catalogado entre os direitos fundamentais sociais assegurados pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), a proteção à maternidade e à infância[i] demanda, para sua adequada efetividade, uma implementação articulada de outros direitos fundamentais, como o direito à saúde, os direitos fundamentais da criança[ii] e, particularmente, a proteção da mulher trabalhadora. A salvaguarda jurídica do lugar de trabalho da trabalhadora gestante concretiza o direito fundamental de proteção à maternidade e à infância por meio de outros direitos-garantias, como a licença-maternidade[iii] e a garantia provisória de emprego[iv].

A despeito de louvável e desejável, diante da fundamentalidade da maternidade, toda essa rede de proteção (integrada, ainda, por normas internacionais[v]  e infraconstitucionais[vi]) pode, porém, redundar em discriminação e desincentivo à contratação feminina, pois imposições normativas que impactam financeiramente no custo produtivo tendem a ser mal recebidas pelos empregadores. Nesse sentido, há de se ter cautela quando da interpretação e aplicação desses preceitos protetivos, a fim de evitar consequências deletérias às suas destinatárias, notadamente por aquelas normas publicadas neste período pandêmico, as quais, pela urgência da regularização, não raro, foram editadas com alguma atecnia e lacunas.

E uma dessas normas que merece atenção é a recém-publicada Lei nº 14.151, de 12 de maio de 2021, que dispôs sobre o afastamento da empregada gestante das atividades de trabalho presencial durante a emergência de saúde pública de importância nacional (e internacional) decorrente do novo coronavírus[vii]. Como expressão da tutela do trabalho da gestante, essa lei, com suas poucas palavras, determinou o afastamento compulsório da trabalhadora grávida das atividades de trabalho presencial enquanto perdurar a situação emergencial de pandemia causada pela Covid-19, sem prejuízo da sua remuneração.

Tendo por fundamento a orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Governo Federal brasileiro reconheceu a gestante como integrante do grupo de risco de maior probabilidade de desenvolvimento dos sintomas mais graves decorrentes da infecção pelo novo coronavírus[viii] e, neste passo, pretendendo resguardar a saúde da gestante, do nascituro e a preservação da unidade familiar, entendeu por bem também impor aos empregadores a obrigatoriedade de afastamento da trabalhadora gestante do meio ambiente de trabalho, ainda que não haja possibilidade de continuação da prestação do serviço de maneira remota.

Em análise da referida legislação, entende-se que sua principal determinação é a transferência da trabalhadora gestante do trabalho presencial para que continue exercendo suas atividades “em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância”. Para tanto, o empregador estaria autorizado, provisoriamente, a realocar a empregada em função compatível com alguma forma de trabalho a distância enquanto durasse o distanciamento do trabalho presencial. Desse modo, somente excepcionalmente e na eventual impossibilidade de prestação remota do serviço é que ocorrerá o afastamento completo da trabalhadora de suas funções, estando liberada de cumprir sua contraprestação no contrato de trabalho. E, mesmo nessa última hipótese, de total ausência de prestação de qualquer atividade, permanece a obrigatoriedade de pagamento da remuneração.

Posto isso, a indagação crucial que surge é: quem será o responsável por esse pagamento? Havendo prestação de serviço remoto, por certo, o empregador deverá arcar com a remuneração do trabalho, incluído o valor do adicional de insalubridade porventura existente na atividade original, ainda que o trabalho remoto não esteja sujeito aos agentes nocivos, por aplicação analógica do art. 394-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Porém, a questão torna-se bem mais complexa quando não há possibilidade de prestação do trabalho a distância. Isso porque o contrato de trabalho, sendo sinalagmático, pressupõe a reciprocidade de direitos e deveres entre seus sujeitos, de modo que à prestação do serviço corresponde o pagamento do salário; lado outro, não havendo serviço, em regra[ix], não há direito ao salário. Assim, se a atividade prestada pela trabalhadora gestante não puder ser prestada remotamente, como no caso de profissionais da área da saúde e domésticas, por exemplo, a princípio, não caberia o pagamento da contraprestação pecuniária. Todavia, a fim de preservar a capacidade de subsistência da trabalhadora, a Lei nº 14.151/21 determinou a continuidade da remuneração, ainda que o afastamento do trabalho presencial não seja marcado por qualquer atividade.

Mas a quem competirá esse ônus: Estado ou empregador? Inicialmente, assinala-se que a proteção à maternidade é dever de todos, e não apenas de um ente, particular ou privado, de modo que “nenhum ordenamento deveria atribuir o ônus dos salários do período de afastamento para o nascimento da criança unicamente ao empregador, pois a demografia é assunto sociale não individual daquela gestante e daquele empregador”[x]Tal entendimento vai ao encontro do que estabelece a Convenção 103, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exclui a responsabilidade pessoal do empregador pelas despesas resultantes de licenças em razão da maternidade[xi].

Em razão disso, há quem defenda ser do Estado a responsabilidade pelo pagamento da remuneração da trabalhadora afastada, enquadrando sua gravidez como de risco, a fim de ensejar o recebimento do benefício previdenciário de auxílio-doença ou salário-maternidade “antecipado” durante o período de afastamento. Essa posição fundamenta-se na aplicação analógica do parágrafo §3º do art. 394-A da CLT[xii], que determina a concessão do salário-maternidade para as trabalhadoras grávidas ou lactantes na hipótese de impossibilidade de sua transferência para ambiente de trabalho salubre.

Contudo, tal posicionamento desconsidera relevantes questões estruturais que, na prática, podem inviabilizar sua implementação. Em primeiro, ocorre uma confusão entre gravidez de risco e gravidez em situação de risco. A gravidez de risco pressupõe uma condição pessoal da gestante que, em razão de comprometimento da condição de saúde sua ou do nascituro, encontra-se incapacitada para a prestação do serviço, o que justificaria o afastamento das atividades laborais e consequente recebimento de benefício previdenciário. Isso difere da gravidez durante período de emergência de saúde pública de importância mundial, cujas características de contaminação e vulneração ao vírus tornam as gestantes grupo de risco com maior propensão ao contágio. Nesse caso, não se trata de condição pessoal, mas sim de alcance a todas as gestantes que, por estarem mais suscetíveis a contrair a doença ou a terem maiores complicações clínicas, devem manter-se afastadas do risco.

Sendo assim, legalmente, não há como considerar de risco uma gestação saudável, ainda que em momento excepcional, a ponto de justificar a concessão de benefício previdenciário, como bem pontuou Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho ao tratar da situação prevista no §3º do art. 394-A da CLT “A hipótese de auxílio-doença por gravidez de risco pressupõe um laudo médico atestando essa condição. Não deverá essa situação jamais ser utilizada como subterfúgio para afastar empregada gestante que não pode ser realocada. (…) qualquer atitude destinada à sua concessão indevida e/ou por prazo superior ao estabelecido em lei, ainda que com fins a solucionar a eventual impossibilidade de realocação da empregada, pode ser considerada fraude e severamente punida[xiii].

Em segundo, todo benefício previdenciário demanda, previamente à sua criação e concessão, a indicação de fonte de custeio específica, conforme determina a CF/88, em seu art. 195, §5º[xiv], requisito não cumprido pela Lei nº 14.151/21, ao não indicar referida origem de recursos para pagamento. Ademais, considerando a máxima do Direito que a “lei não contém palavras inúteis”, é possível afirmar que a mens legis contida na lei em análise está no sentido de imputar ao empregador o ônus de custear as despesas decorrentes do afastamento da empregada gestante, já que se utilizou do termo “remuneração”. Caso quisesse imputar tal custo ao INSS, o legislador teria utilizado o termo “salário-maternidade” como o fez no §3º do art. 394-A da CLT.

Nesse sentido, a despeito de recente decisão provisória em sentido contrário[xv], entende-se que a responsabilidade pelo pagamento da remuneração da gestante afastada do trabalho presencial recai sobre o empregador. No entanto, considerando a unidade do ordenamento jurídico, a Lei nº 14.151/21, especialmente em razão do seu texto exíguo, deve ser lida conjuntamente às demais que a precederam e que com ela se contextualizam.

Defende-se, assim, que a aplicabilidade da lei em questão deve ter em conta as alternativas dispostas nas recentes normas sobre enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública no âmbito das relações de trabalho, como as Medidas Provisórias (MP) 1045[xvi] e 1046[xvii], ambas de 27 de abril de 2021, mormente para evitar que atos benéficos tendentes à proteção da gestante trabalhadora e do nascituro resultem em efeitos deletérios, como discriminação do trabalho feminino e encerramento de empresas.

Embora o afastamento da empregada gestante seja compulsório, em não sendo possível a prestação dos serviços de forma remota, poderá o empregador valer-se das disposições legislativas voltadas à preservação do emprego e da renda, bem como à garantia da continuidade das atividades laborais e empresariais, trazidas pelas referidas MPs, notadamente por seu objetivo edificante de sustentabilidade do mercado de trabalho.

Tais medidas, conquanto não elidam a responsabilidade do empregador, nem eliminem por completo os custos da remuneração da gestante afastada, ao menos arrefecem as adversidades e despesas suportadas pela obrigatoriedade de distanciamento social. Logo, conforme previsão da MP 1046, poderia o empregador, ao invés do simples afastamento sem execução das atividades, optar pela antecipação de férias individuais, o aproveitamento e a antecipação de feriados e a compensação por meio do banco de horas, pois são alternativas legalmente autorizadas para aplicação à trabalhadora gestante, desde que observadas as condições previstas no texto legal.

Outra possibilidade de arrefecimento do ônus trabalhista ocasionado ao empregador seria a suspensão temporária do contrato de trabalho pelo prazo de 120 dias, trazida pela MP 1045. Ainda que polêmica, em razão da eventual redução do salário durante a suspensão, tal medida tem previsão expressa de aplicação às trabalhadoras gestantes, conforme depreende-se do seu art. 10, inciso III.

Trata-se de hipótese de suspensão sui generis, caracterizada pela ausência de trabalho, porém mantida a remuneração, ainda que esta seja custeada pelo Estado (por meio da concessão do benefício emergencial de manutenção do emprego e da renda) e, provavelmente, em menor valor que o auferido quando em trabalho[xviii]. Optando pela suspensão do contrato com utilização do benefício emergencial, é importante registar que haverá aquisição de garantia provisória de emprego (art. 10) que, no caso da gestante, será adicional à garantia assegurada pelo art. 10, II, b, do ADCT (desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto), iniciando-se ao término desta e estendendo-se por período equivalente ao acordado para a suspensão.

Outra relevante implicação diz respeito à responsabilidade civil do empregador pelo descumprimento da Lei 14.151/21. Isso porque, ao determinar o afastamento compulsório da trabalhadora gestante do trabalho presencial para evitar sua contaminação pelo novo coronavírus, a lei estipula uma presunção legal de risco, o que resulta no estabelecimento de responsabilidade civil objetiva por parte de quem a descumpre, a qual será reconhecida independentemente da natureza (de risco ou não) da atividade prestada pela gestante.

Dessa maneira, caso o empregador não proceda ao afastamento e ocorra contaminação da gestante, ele será objetivamente responsável por todos os danos, materiais e morais, experimentados pela trabalhadora e pelo nascituro, dispensada a ofendida do ônus de comprovar dolo ou culpa do agente. Do mesmo modo, é viável o pedido de danos morais, ainda que não tenha havido contaminação, pois o simples fato de sujeitar ilegalmente a gestante ao risco de contágio resulta em dano moral in re ipsa (presumido)[xix]. Em ambos os casos, havendo ou não contaminação, reconhece-se o direito da gestante rescindir indiretamente o contrato de trabalho por descumprimento de lei e grave ofensa à integridade da trabalhadora.

A explanação destas implicações, longe de pretender esgotar o assunto, tem o intuito de contribuir e provocar novas reflexões sobre o tema, buscando soluções jurídicas que melhor atendam aos interesses de trabalhadoras gestantes e empregadores. Porém, a adequação das conclusões aqui apontadas somente se confirmará ao longo do tempo com a utilização da legislação pelos sujeitos da relação de trabalho e com a provocação e manifestação do Judiciário em todas as suas instâncias.

[i] Art. 6º, CRFB/88

[ii] Art. 227, CRFB/88.

[iii] Art. 7º, CRFB/88.

[iv] Art. 10, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição: II – fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa: b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.

[v] Convenção 103 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235193/lang–pt/index.htm

[vi] Arts. 391 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho.

[vii] Lei nº 14.151, de 12 de maio de 2021. Art. 1º. Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração.

Parágrafo único. A empregada afastada nos termos do caput deste artigo ficará à disposição para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância.

Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

[viii] https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/biblioteca/nota-informativa-no-13-2020-se-gab-se-ms/

[ix] Excetuadas as hipóteses de interrupção do contrato de trabalho, em que, embora o trabalhador não preste serviços por determinado período, há o dever legal de pagamento dos salários, como nas hipóteses de férias e faltas justificadas, previstas no art. 473, da CLT.

[x] BATISTA, Homero. CLT comentada. 3ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2021, p. 401.

[xi] Convenção 103, OIT. Art. IV — 1. Quando uma mulher se ausentar de seu trabalho em virtude dos dispositivos do art. 3 acima, ela tem direito a prestações em espécie e a assistência médica.

  1. Em hipótese alguma, deve o empregador ser tido como pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas às mulheres que ele emprega.

[xii] Art. 394-A, §3º, CLT. Quando não for possível que a gestante ou a lactante afastada nos termos do caput deste artigo exerça suas atividades em local salubre na empresa, a hipótese será considerada como gravidez de risco e ensejará a percepção de salário-maternidade, nos termos da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, durante todo o período de afastamento.

[xiii] BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. O que fazer quando não é possível realocar gestantes em local não insalubre? In: JOTA. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/realocar-gestantes-insalubre-02082019>

[xiv] Art. 195, CF/88, §5º.

[xv] Mandado de Segurança Cível (120) nº 5003320-62.2021.4.03.6128 / 1ª Vara Federal de Jundiaí. Em decisão liminar proferida em sede de Mandado de Segurança, impetrado por empregador doméstico, o juízo da 1ª Vara Federal de Jundiaí entendeu que, no caso de trabalho doméstico, em que resta afastada a possibilidade de trabalho remoto ou outra forma de trabalho à distância, é hipótese de afastamento com concessão de benefício previdenciário “Criado esse benefício (direito a prevenção ao risco de contágio pela Covid-19) pelo Estado, não pode ele ser suportado individualmente por determinadas pessoas, mas por toda a coletividade. A situação se amolda em tudo, então, à previsão do artigo 394-A da CLT, cujo parágrafo 3º, incluído pela Lei 13.467, de 2017, criou hipótese de concessão de salário-maternidade antecipado.”

[xvi] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.045-de-27-de-abril-de-2021-316257308

[xvii] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.046-de-27-de-abril-de-2021-316265470

[xviii] Diz-se “provavelmente em menor valor”, já que , de acordo com o art. 6º da MP 1045, o valor do benefício emergencial será “equivalente a cem por cento do valor do seguro-desemprego a que o empregado teria direito” ou “equivalente a setenta por cento do valor do seguro-desemprego a que o empregado teria direito” quando empregador tiver auferido, no ano-calendário de 2019, receita bruta superior a R$ 4.800.000,00, pois, nesse último caso, a empresa deverá arcar com o pagamento de ajuda compensatória mensal no valor de trinta por cento do valor do salário do empregado.

[xix] Por certo o empregador poderá livrar-se da responsabilidade provando causa excludente desta, como culpa exclusiva da vítima ou causa superveniente independente.

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Fonte: Portal Jota